terça-feira, abril 28, 2020

UM TEXTO COM PRONÚNCIA



Quando comecei a fazer televisão, queria ser o melhor e que o país me conhecesse. Ocamente queria ser o melhor empregado de mesa da TV, como se isso me fizesse gente. Depois quis ser conhecido, como se isso determinasse a minha identidade televisiva. Felizmente caí na terra a tempo. Passados 20 anos, quero fazer bem o meu trabalho e que em cada momento televisivo eu consiga transmitir algo de bom, construtivo, edificante, tolerante e inspirador. Eu sei, sonho alto. Mas para que servem os sonhos, se não acompanharem o voo dos pássaros.

Tenho pena que em alguma televisão que se faz o compromisso do entretenimento e informação se confundam com espetáculo de palhaços tristes, mas pintados com largos sorrisos. Se use e abuse dos sentimentos de fragilidade, de vidas simples, de sotaques que ao invés de serem genuínos, são forçados e ridículos, e haja um certo orgulho em ser-se arrogante, ignorante e quase que bobo de uma corte, que já não existe, a falar de um país que já não é assim.

Somos um país diferente, sabem? Em trás os montes não há só velhinhos vestidos de negro, com muito respeito pelos que ainda existem. No Minho não se toca só concertina à desgarrada, no Alentejo não existe só sestas e calor, o algarve não fala inglês em vez de português. Somos um país diferente, e tenho pena que alguns portugueses, por uns trocos, vendam a sua identidade para fazer espetáculo, e as televisões peguem neles e os coloquem como que embaixadores de uma região. Tenho pena que a informação, seja, por vezes, mais centralista que os nossos governos. Tenho pena que os sotaques sejam ainda vistos como “ modos tão giros e super diferentes de falar, ai eu adoro!!!” Só falta mandar amendoins para as gentes de outras bandas, para tocarem o sino, como se fazia no zoo em Lisboa ao elefante carismático; ainda bem que o tempo também aí mudou.

Mas também me agonia apoiar-se que venham habitar o interior, cheios de regalias, como se fosse um exílio a que se marcham, e quem vive nessas terras e lugares continue a trabalhar, sem incentivos por não ter deixado para trás a sua terra. Caramba, é assim tão difícil de ver o todo em vez da parte?
O circo que se monta à volta das pessoas e das terras que heroicamente são fieis a si mesmas, é triste e de profunda ignorância e quase xenofobia cultural. Igualmente triste é que é dessas terras e lugares que surgem algumas personagens televisivas, e que têm uma certa vergonha do seu ser, e assim se vendem, como se a identidade tivesse um preço, e fosse a televisão lavar o que as pessoas sempre serão, de onde vêm, e para onde irão. Para onde irão? É o que gostava de saber.
É isto. Mas viva a liberdade!

quinta-feira, abril 09, 2020

UM CASO COM A MINHA CASA





A casa. Eu sou dos da casa. Gosto de fechar a porta. Olhar para as minhas divisões e sentir nelas a minha vida. Tive 3 casas. A dos meus pais, na praia e com o que tudo isso me trouxe, um pequeno apartamento alugado, que marcou o início da minha vida emancipada, e o apartamento onde vivo, cheio de luz, plantas, horizonte de mar. É a biografia das minhas casas. Vivo nesta última há uns 17 anos, perdi a conta. Tudo o que ela tem fala de mim, ou foi feito por mim, ou trouxe de um momento e de um lugar ou teve a mão de alguém que gosto muito. Em casa escrevo, faço ginástica, amo, crio, leio, faço silêncio, ouço discos, crio plantas, guardo a luz. É, na minha casa guardo a luz, encho-me de brilho para sair dela feliz, e a ela voltar com aquela necessidade de recarregar.

Viajo muito, e tenho sempre saudades da minha casa, e imagino como ficariam as coisas do outro mundo em minha casa. Honestamente, acho que tenho um caso com a minha casa. Vibro com as folhas novas do bonsai, ou do jasmim, as novas peças de oleiro que coloquei na janela, as memórias da minha mãe que vou dando moldura, para que me cumprimentem muitas vezes. Adoro ver a luz entrar nas portas das minhas varandas e adivinhar-lhe as horas, mornas. E da chuva, como é bom ouvir a chuva de dentro da minha casa, enquanto a lareira me avisa da sua crepitada presença. E como gosto de guardar decorações antigas e depois busca-las e troca-las pelas que estavam, sair de casa, e entrar logo, e olhar para tudo com um espanto renovado, como se fossem coisas novas. A minha mãe fazia o mesmo, e ria-se tanto com ela mesma. E eu rio-me tanto comigo mesmo.

Na minha casa as luzes de natal estão acesas todo o ano, a lembrar-me Paris e Londres, nos cafés e restaurantes onde tantas vezes me perdi à procura de cada detalhe. Mas, essencialmente, porque gosto do Natal. Não sei o deste ano, sem a minha mãe, acho que vou saltar a época. Logo vejo.
Na minha casa recebo quem gosto, visto-a para receber e lá ando eu a rodopiar pela casa porque ela vai ser vista e tem de estar bonita, e na cozinha os aromas ganham-se de vida e carácter. É isso, carácter, é o que gosto na minha casa. Fala em nome próprio. Móveis desenhados por mim, outros resgatados do tempo, ou com assinatura de criadores que gostei. É para isto que serve uma casa, para falar da nossa alma, da nossa história pela terra. Das nossas geometrias emocionais. Não quero saber se não gostam da minha casa, mas adoro que a elogiem, até acho que ela dá um pulinho de alegria, como que a dizer-me: vês? Gostaram de nós. Se tenho a casa que quero, claro que sim, porque ela tem tudo o que o meu tempo precisa.

A casa é, nos dias de hoje, o meu ventre, o meu colo, o peito que me abriga. Da minha varanda vejo o mundo, e quando não vejo tudo, saio, mas para voltar rápido, porque na minha casa, a luz, é um espetáculo sempre diferente.


quinta-feira, abril 02, 2020

SAÍ SEM O MEU SER




Saí cedo de casa. Deixei o ser à mesa. O sol entrava desleixado pela janela. O ser ficou sentado. Ficou bem.

Saí leve de mim. Percorri caminhos verdes, azuis e limpos. Essencialmente limpos. Da vida só quero o que me baste, aos olhos e ao coração. Regressei a casa. O ser estava à janela. Porque era meu, partilhei o que recebi do caminho. Achamo-nos mais inteiros, um do outro.  


Até amanhã.

Quarentena abril 2020